Ó lavradores do Douro
já não comeides vitela.
Deu a doença nas vinhas
chamada filoxera.1
Num dos feriados deste Junho abafadiço fui até à aldeia e juntei-me a cavaquear na rua com três rapazes do meu tempo, pois gosto sempre de recordar o que lá vai. Daí até a conversa derivar para o drama da vinha e do vinho foi um ai compassado. E daí até estarmos na adegazinha de um deles foi uma revoada de andorinhas. Depois de virarmos o primeiro copo a molhar uma salada de bacalhau, o Zé Nocas deu um pulo a casa, trouxe uma gaita de beiços e pôs-se a tocar a caninha verde. E foi então que participei numa acção cultural do camandro. O Tó Carlos ergueu o seu copinho de tintol e desatou-se:
Ó lavradores do Douro,
quem vos viu e quem vos vê!
Estais a dar um estouro
e vós mal sabeis por quê.
Mais uma garfada de bacalhau regadinha a preceito.
Ó lavradores do Douro,
que mal vos pagam as uvas!
Estais a dar um estouro
por causa dos sanguessugas.
Toda a gente arregalou os olhos que se despegaram, caíram dentro dos copos e, antes de voltarem as órbitas, se juntaram: tlim, tlim. E o Tó, cada vez mais diabrete, a apontar alvos:
Ó lavradores do Douro,
que mal vos pagam o vinho!
Estais a dar um estouro:
é o neoliberalismo.
Já estava gente à porta. Vai um copo? Ora pois. Favores de gente honrada… E o Tó a botar a última canta:
Ó lavradores do Douro
ora prestai atenção:
para não dardes o estouro
o que é preciso é união.
Palmas, está visto. Mas também comentários vermelhinhos. Foi na noite desse dia que eu plasmei esta cronicazinha. Assim pequena. Assim nua. Para se contemplar, ou antes, para se ler melhor. E digam-me os senhores leitores se uma coisa destas está ou não a calhar com a paisagem cultural duriense, evolutiva e viva.
- quadra popular duriense nas últimas décadas do séc. XIX ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.