As chouriças doces
Ao fim duns tempos, juntaram-se os três grupos porque já tinham saudades uns dos outros. Foram dar a uma aldeia onde se distribuíram por quatro casas de lavoura. A um rancho numa delas deram-lhe chouriças doces com água-pé. Comeram, comeram e tanto gostaram que pediram à patroa-nai 1 que lhes ensinasse a fazer petisco tão saboroso. Disse ela que sim, mas só quando acabassem de plantar o bacelo que um deles tinha ido mercar à feira de Alijó e que aliás não parecia nada mau,
– Pois não, senhor Silva?
– É muito bom, minha senhora – respondeu o interpelado que já arranhava umas coisitas de português. – A propósito vou le dar o recibo.
E deu-lho para a mão. O qual, como curiosidade aqui se transcreve:
“Recibi da mau dasenora Maria Magalhais acuantia de corenta mil reis pra cedida de dois milleiros de bazelo quele prantey no ano de mil ocho cientos corenta y un y para su seguro ledoy el presente recibo. Que firmo: Pedro Silba.” 2
A patroa serviu, depois da água-pé, uma rodada de vinho, a pensar que, se o seu casal ia progredindo, isso também se devia a quem para ela trabalhava. Os galegos eram de facto bons operários, mormente no serviço mais penoso dos roteamentos, e ela apaparicava-os com as tais chouriças doces. Logo que os homens terminaram a safra do plantio, Maria Magalhães ensinou-lhes o segredo das chouriças.
– É assim, tomai lá tento – disse: dá-se ao reco, durante três dias, sopas de mel, isto é, três dias antes da matança. Depois é só fazer as chouriças como as outras e pô-las ao fumo. Os galegos ouviram e no dia de feira trouxeram para o barracão onde pernoitava a malta dos vinte e cinco um berrão taludo. Mas, como o berrão berrava, o chefe disse:
– Não dormirá connosco, pois durante a noite precisamos de descanso e cheirinho a alfazema.
E foi pô-lo numa lojinha ao lado que, como o barracão, tinha sido alugada ao prior da freguesia, a um preço baixo, simbólico – acrescentara ele, – pois, sendo os galegos bons cristãos, mereciam tal favor.
Tudo nos conformes. Trataram a alimária, segundo a receita, mataram-na, fizeram a desfeita e para as chouriças de mel aproveitaram as tripas, cheias como estavam, pois.
Antes de as porem nas varas do fumeiro sobre o lume de rama de pinho, provaram o acepipe. O chefe, que na casa onde trabalhava tinha sido elevado à categoria de capataz, franziu as beiças e o nariz, piscou os olhos e sentenciou:
– Ó compañeros, isto, a bem dizer… Oh!, ih!, uh!…, direi que é mesmo mierda. Mas, como a portuguesita afiançou que era assim que se faziam as chouriças, uhuuuu!, vamos continuar, pois…, verdade, verdadinha, são mesmo boas!
Escusado seria dizer que, durante toda a santíssima noite, nuestros hermanos andaram de esforrica. E atribuíram o contratempo ao desconhecimento da língua portuguesa, quando a patroa-nai lhes dera a receita.
Nós todos três
Resolveram então aprender melhor a nossa língua e por isso deitaram sortes para escolherem três deles, que numa tarde de domingo foram à taberna, demorando-se lá um bocado a jogar a bisca lambida, mas sobretudo atentos à mesa do lado onde três magnates da aldeia se distraíam com outro jogo. Ouviam mais do que jogavam e, passada uma hora, resolveram sair porque se julgavam na posse do essencial da língua de Camões.
Um sabia dizer na perfeição: “nós todos três”; o segundo, “cá por causas”; e o terceiro, “pois ‘stá claro”. Regressavam no dia seguinte do trabalho, pelo anoitecer, quando, a meio caminho, ouviram um tiro, supondo eles naturalmente que se tratava de algum caçador de javardos, pois viram-se muitos por ali. Mas qual não foi o seu espanto, quando descobriram, mais adiante, um homem ensanguentado que lhes meteu muita pena, não sabendo o que haviam de fazer. Ali estiveram algum tempo, pondo-lhe um lenço tabaqueiro num buraco aberto no peito, até que chegaram o regedor e um cabo de ordens, verificando-se que o homem estava morto. O regedor dirigiu-se então aos galegos:
– Sabeis quem matou este homem?
– Nós todos três – disse um.
– E porquê?
– Cá por causas – disse outro.
– Então agora ides presos.
– Pois ’stá claro – concordou o terceiro, convencido de que tanto ele como os amigos tinham aprendido finalmente a falar bom português.
O grupo dos simpáticos galegos estava agora desfeito. Um deles que bem sabia da inocência dos camaradas, tidos injustamente como assassinos, ainda foi tirar satisfações com o cabo de ordens. Mas, palavra puxa palavra, acabou por levar umas bordoadas. Os galegos, agora vinte e dois, decidiram regressar à sua terra, bem desiludidos com a sorte. Aproximavam-se as vindimas que boas negaças lhes faziam com um cheirinho a dinheiro fresco, mas eles, ná, botaram-se ao caminho. Alguém ouviu cantarolar:
“Fui ao Douro às vindimas,
não achei que vindimar.
Vindimaram-me as costelas
– Olha o que eu lá fui ganhar.”
O Zé do Telhado
Veio a descobrir-se na tasca, passado um ano, que os três galegos retidos no aljube estavam inocentes. “In vino veritas”, isto é, o vinho a pôr os pontos nos is. Dois homens a insultarem-se e um deles a revelar o crime praticado pelo outro.
Um dos egressos ficou a trabalhar no quintalório da prisão, dado o seu bom comportamento e jeito para serviços hortícolas. Tanto se dava ele com as couves tronchas que acabou por casar com a filha dum encarcerado. O segundo abalou sem destino.
O outro, aldeagante que era, entrou a pedinchar de terra em terra e boa ideia teve: mendigar, ao fim e ao cabo, é ofício que exige uma sabichonice especial. Lá se foi arranjando até ao dia em que resolveu regressar a penates. Saiu da Régua e meteu pelas faldas do Marão, seguindo o caminho dos almocreves. Querendo Santiago, havia de chegar são e salvo ao Gerês. Barbas compridas, saquitel aos ombros e forte cana na mão. Roto e sujo, claro. Quem o visse apiedar-se-ia dele concerteza, até porque ao ver gente fingia manquelitar. Ali por Ansiães parou numa encruzilhada a estudar os ventos e sentou-se. Eis senão quando, aproximou-se um homem a cavalo a quem fez alto, pedindo-lhe a esmolinha pelas cinco chagas de Cristo. O do cavalo apeou-se, mirou-o e deu-lhe um pinto 3. O pobre agradeceu com uma lenga-lenga cantarolada, mas quando o outro fazia menção de se ir embora voltou à carga:
– Mais uma moeda, senhor. Vou para a Galiza e agora só tenho dois pintos.
O cavaleiro voltou-se:
– Então eu ando a tenir, hoje não consegui nada, aumentei a tua fortuna para o dobro e tu ainda me vens com chorices! Dá cá a cana, que te vou dar com ela.
O galego pôs logo a cana atrás das costas – não, não, dizia, – mas o outro sacou-lha e, ouvindo qualquer coisa chocalhar dentro, arregalou os olhos.
– Não, não. Dê-me a canita.
– Quando estou a ouvir música não gosto que me incomodem – disse o viajante que quebrou a cana contra os joelhos, saltando de dentro muitas moedas de ouro. Ante o lacrimoso mendigo que entre insultos e palavrões fazia um escarcéu dos diabos, meteu o dinheiro num alforge.
– Ladrón, ladrón!
O cavaleiro, sorridente, voltou-se para ele e disse:
– Chamaste-me ladrón? Sim, isso é verdade. Mas também é verdade que quem tudo quer tudo perde. Vai lá dizer na tua terra que quem te roubou foi o Zé do Telhado. Ao ouvir tal, o mendicante fugiu a sete pés. Livra!
in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004
- mãe ↩
- “Recebi da mão da senhora Maria Magalhães a quantia de quarenta mil reis pela cedência/venda de dois milheiros de bacelo que lhe apresentei (entreguei) no ano de mil oitocentos e quarenta e um, e para sua segurança dou-lhe o presente recibo. Que firmo: Pedro Silva”. Prantei (verbo prantar) usa-se no Douro com o sentido de apresentei, dei, entreguei. ↩
- moeda que valia 480 réis ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.
Carlos Almeida
Sou um seguidor deste Espaço : Prosa & Poesia / António Cabral.
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tudo que gira à volta de tão ilustre Escritor e Poeta Transmontano.
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