Cruzeiro no Douro

O que mais perplexo me deixou numa viagem rio acima foi este velho e célebre pensamento: o caminho que sobe e o caminho que desce são um e o mesmo. Olhei em várias direcções e acabei por revelar a minha perplexidade a um companheiro de ocasião que como eu estava junto da amurada. Para mim está claro – sentenciou, – porque uma coisa é o caminho, outra quem o caminha. O meu parceiro era muito bem capaz de ter razão. Corria uma aragem naquela seda.

O barco era de luxo, pelo menos para a lembrança que tinha de, lá do alto, sobre uns penhascos, ver no Douro outro tipo de embarcações, entre elas o barco rabelo. No convés que servia de cobertura aos salões estavam quase todos os convidados, a dizerem coisas, a contemplarem coisas, e eu notei que o meu vizinho do lado se afastara ligeiramente de mim, empenhado noutra vista parcial. Aproximava-se uma rapariga com duas bandejas, uma na mão direita, plena de bolinhos, outra na mão do servente que a acompanhava, um senhor mesureiro que, antes de oferecer os cálices de porto meio-seco/branco-palha aos convivas, os passava pelo sorriso da náiade, aromatizando-os. O meu companheiro pegou elegantemente num cálice, como se colhesse uma pétala, e deve ter reparado que a moça tinha um andar oscilante de malva-rosa, a haste de todo o corpo a abrir-se em pontinhos floridos, desde os joelhos que eram em tudo semelhantes a um reflexo de água no momento de arder.

Ouvi apitar um comboio, ah, o comboio da minha infância que descia de Foz Tua, e olhei para a esquerda. Fui com os olhos: procurava entre as dobras da encosta um olival íngreme aonde se chega por uma orreta – orretas não faltam, dizia a mãe. E as manhãs frias de Inverno a apanhar azeitona, as ervas doíam nos dedos. Onde está o olival?, pergunto aos olhos, mas eles não o descobriam, habituados que estavam a descer a rugosa ladeira, a decorá-la de vérbero em revérbero, não eram agora capazes de subir, efectuando o mesmo percurso: a memória opunha-se: lá tem as suas regras; e, se o barco naufragasse, o meu olival naufragaria com ela, ficando os olhos por ali a boiar inutilmente.

Viajar é sobretudo um modo de regressar às origens? Se este passeio tivesse sido marcado para jusante e não rio acima, o barco teria com certeza menos afluência de passageiros segundo me haviam informado. Não poderei assim concluir que todo o caminho é quem o caminha? E, se esbatendo-se a consciência na emanação ácida das coisas, no círculo em que matéria e espírito trocam membros entre si, me vierem dizer que não há subir nem descer, mas apenas um frémito ocasional? Oh Heráclito, Heráclito!

Sinto um leve toque de malva-rosa no ombro ferido.

– Vamos servir o almoço. Não se importam de descer para a dining-room?

Descer? O barco nesse momento subia a eclusa da Valeira.

in O homem que fugiu com o rio às costas (livro inédito)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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1 replies on “Cruzeiro no Douro

  • Jorge castro

    Curioso! Há dias, descendo o Douro, debati-me para reconhecer lá no alto o Olival da Pena ,que conheço bem, mas naufragaram os meus olhos. Por isso me agarrei especialmente ao terceiro parágrafo.
    Este texto fez-me lembrar uns versos do autor dos quais eu gosto muito: “Não vieste pelo caminho mais curto e isso para já é um sinal do diálogo a que habituaste a paisagem”

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