I
Dizer-te amor que a amendoeira do cômoro floriu
de novo e os belos cravos da nossa janela
se debruçam agora das palavras
eis uma verdade que tu compreendes melhor do que ninguém
tu que me ajudaste a levantar um pouco da noite
para pétala a pétala construirmos o tempo
a amendoeira floriu e a nossa casa ergue-se
ao lado das outras com sua nuvem acesa
o pensamento varado de azul misturando-se com a chuva
trepando às árvores pondo uma flor em cada coisa
II
Este país de sonhadores parece ter acordado.
Dizem que um dia em Sagres o Infante bebeu o infinito,
Deus ou o Mundo, e nos intervalos da digestão
mandou caravelas para a África. Foi assim
que o Sonho começou. Sonho com suas estrelas
e grandes bandeiras ensanguentadas,
com homens, sim, que heroica e ironicamente
urinavam nas faces da morte,
com homens também que disputavam ao fogo o poder de destruir.
O grande império lá se foi dilatando,
enquanto na ocidental praia lusitana o Sonho
era comido aos bocadinhos suculentos por uns tantos
senhores de golinha e unhas afiadas.
E foi assim que o Sonho continuou. Cada vez mais pequeno
até que.
III
Portugal acordou. Num homem a dormir o abutre
emprega facilmente a sua garra; quando o homem acorda,
sente mais dificuldade, como é natural, mas.
Isto quer dizer que não estamos seguros, enquanto
os abutres existirem.
Eles tremem agora nos galhos do seu pavor,
eles que se juntavam em festim à volta das nossas ideias.
Vede-os: tremem só. Asas caídas e bico ofegante,
projetam ainda a sua sombra.
Fora com os abutres, desde a ave
ao industrial de rapina.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.